domingo, 16 de fevereiro de 2014








É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor 
Que se estivesse dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria.Atento
 Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto.Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite

Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo do amanhã será riqueza:
A cada noite,eu Ariana, preparando
Aroma e corpo.E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só exito
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa,Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência? 

Porque te amo
Deverias ao menos te deter
um instante

Como as pessoas  fazem
Quando vêem a petúnia
Ou a chuva de granizo.

Porque te amo
Deveria a teus olhos parecer
Uma outra Ariana

Não essa que te louva

A cada verso
Mas outra

Reverso de sua própria placidez
Escudo e crueldade a cada gesto.

Porque te amo, Dionísio,
é que me faço assim tão simultânea
Madura, adolescente

E por isso talvez
te aborreças de mim.

Quando Beatriz e Caiana te perguntarem,Dionísio
Se me amas, podes dizer que não.
Pouco me importa
ser nada à tua volta,sombra,coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã.

A mim me importa,Dionísio,o que dizes deitado,ao meu ouvido

E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.
E no verso se faria injúria

E no meu quarto se faz verbo de amor

Três luas Dionísio
Não te vejo
Três luas percorro a casa minha
E entre o pátio e a figueira 
Converso e passeio com meus cães
E fingindo altivez
Digo a minha estrela, essa que é inteira
prata dez mil sóis

Sírios pressagam que ariana pode estar sozinha sem Dionísio
Sem riqueza ou fama porque há dentro dela um som maior
Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada
Mais luzente alta quando tu Dionísio não estás


Três luas Dionísio
Não te vejo
Três luas percorro a casa minha
E entre o pátio e a figueira 
Converso e passeio com meus cães
E fingindo altivez
Digo a minha estrela, essa que é inteira
prata dez mil sóis

Três luas,Dionísio,não te vejo


É licito me dizeres, que Manan, tua mulher
Virá à minha Casa, para aprender comigo
Minha extensa e difícil dialética lírica?
Canção e liberdade não se aprendem

Mas posso,encantada, se quiseres

Deitar-me com o amigo que escolheres
E ensinar à mulher e a ti,Dionísio,

A eloquência da boca nos prazeres
E plantar no teu peito, prodigiosa,
Um ciúme venenoso e derradeiro.

Se Clódia desprezou Catulo
E teve Rufus, Quintius,Gelius,
Inacius e Ravidus
Tu podes muito bem, Dionísio,
Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora
E refrescar tuas noites
Com teus amores breves.
Ariana e Catulo, luxuriantes
Pretendem eternidade,e a coisa breve
A alma dos poetas não inflama.
Nem é justo,Dionísio, pedires ao poeta
Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra. 

Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático Jazigo

Pensando

Que se a mim não me deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.

E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata

Apenas tu,Dionísio,é que recusas
Ariana suspensa nas suas águas.

Se todas as tuas noites fossem minhas
eu te daria,Dionísio,a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada,sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria,Dionísio, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
e agudo se faria o gozo teu.
                                                      Hilda  Hilst 

     

 










domingo, 2 de fevereiro de 2014







Lua Adversa

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
Fases de vir para rua...
Perdição da minha vida! 
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
Tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
No secreto calendário
Que um astrólogo arbitrário
Inventou para meu uso.

E roda a melancolia
Seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
Não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
O outro desapareceu...
                              Cecília Meireles