quarta-feira, 27 de agosto de 2014








Não me afastar de você

Disseste tudo ao dizer:
 Quando a ausência de mim
 Fizer presença em meu ser,
Visitarei a mim mesmo,
 Para não me afastar de você.
Quando o peso do dever
 Em mim soterrar a alma
Entre os escombros da vida,
Quero flutuar qual pluma
Na leve brisa da calma.
 Quando o dizer tiver o poder
De revelar o que não quero,
 Paro a pluma, guardo a voz,
 Me rebelo no silêncio
Para me manter sincero.
 Antes da noção do certo
Se revelar um engano,
 Saio do cotidiano:
Adentro em outras rotinas,
Noutros mares vou pescar.
Não quero porto seguro,
Só âncora, vela e mar.
Âncora para ser meu porto,
 Vela para me levar,
Mar para, no litoral,
As minhas ondas quebrar.
                          Rubem Alves


"O rio passa ao lado de uma árvore, cumprimenta-a, alimenta-a, dá-lhe água...
e vai em frente, dançando. Ele não se prende à árvore.
A árvore deixa cair suas flores sobre o rio em profunda gratidão,
e o rio segue em frente. O vento chega, dança ao redor da árvore e segue em frente.
E a árvore empresta o seu perfume ao vento... Se a humanidade crescesse,
amadurecesse, essa seria a maneira de amar."

terça-feira, 19 de agosto de 2014




Noite calma



 No ar frio da noite calma
Boia à vontade a minha alma, 
Quase sem querer viver 
Sente os momentos correr,
Como uma folha no rio,
Sente contra si o frio 
Das horas fluidas levando
Seu inerte corpo brando.
Mais do que isto? Para quê?
Tudo quanto o olhar vê 
A mão toca, o ouvido escuta,
A consciência perscruta,
É inútil que se escutasse,
Que se visse ou se pensasse.
Entre as margens com arbustos
Luz e, na noite dos sustos,
Só o luar repousado,
Ao correr vago e amparado
Do rio deixado em livre
A alma passa, a alma vive.
Ninguém. Só eu e o segredo
Do luar e do arvoredo
Que das margens causa medo.
Nada. Só a hora inútil
Só o sacrifício fútil
De desejar sem querer
E sem razão esquecer.
Prolixa memória, toda.
Rio indo como uma roda,
Noite como um lago mudo,
E a incerteza de tudo.
Recosto-me, e a hora dorme.
Corre-me o que a noite enorme
Atribui à minha mágoa,
Como um ser múrmuro de água.
Ninguém; a noite e o luar.
Nada; nem saber pensar.
Raie o dia, ou morra eu
Volte no oriente do céu
O sol ou não volte mais,
Só sempre os tédios iguais
E as horas, calem o medo,
Como o rio entre o arvoredo,
De noturna consistência,
Com fluida, vaga insistência.
O mal é haver consciência.
                                                 Bernardo Soares




segunda-feira, 11 de agosto de 2014







Particularidades ...


Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... Os pêlos...

 
Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.

 
Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, às boas, à pelica...


O meu tato se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, sonolência, preguiça,
se me quedo a fitar tapetes estendidos.
                                          
                                                               Gilka Machado 
                          
                         Ótima semana à todos!!!